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sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

UM CONTO DE NATAL

Ah que bom! Acabei a minha tarefa por hoje e agora vou pra casa. É véspera de Natal e a cidade iluminada me encanta. Luzes, néons, vitrines acesas, um Papai Noel notívago voltando pra casa depois de um dia de trabalho dentro de um Shopping desta metrópole. Veja quanta gente apressada com seus inúmeros pacotes e sacolas nas mãos. É, hoje é dia de festa. Comemoraremos o aniversário de nascimento daquele que nasceu para nos salvar e nos dar as diretrizes de uma vida de harmonia e alegria. Ele nos ensinou a humildade, pregou o amor ao próximo, nos falou da caridade para com o nosso semelhante e nos deu o exemplo dividindo pães e peixes entre os necessitados. É, relembrar essa bela e eterna página de nossa história faz com que eu passe o tempo. Já sai da via principal e estou já caminhando pelo começo de meu bairro. As luzes ainda são intensas e eu nem preciso de iluminação para me guiar. A lua é bonita e as casas iluminadas transformam tudo, trazendo a claridade. E por falar em claridade, olha só aquela casa ali que beleza! Uma decoração de Natal e tanto, algo de fazer inveja. E quanta gente hein? Deixa-me ver mais de perto...
Caramba, que mesa farta, quanta gente reunida em volta da mesa! Meu Deus, quantos quilos deve ter aquele pernil? Que fome! Minha barriga ronca! Hoje estou meio fraco, aliás, não ando muito bem ultimamente. Deve ser o excesso de trabalho que me impede de me alimentar direito. Mas fazer o que? Ah, que delicia aquele manjar com aquelas ameixas por cima. Vinho, espumante, quanta coisa. Estou babando na janela. Mas espere, alguém levantou da mesa e vem em minha direção. Acho que vai falar comigo.
-O que você está olhando?
-Ah, sabe, eu estou admirando a sua festa e a mesa farta que une você e seus familiares. Como é bonito ver isso não é?
-É sim, mas não é pro seu bico, por favor, vou pedir para você se retirar.
-Me desculpe por ter parado aqui, mas me encanto com o Natal e toda a sua simbologia. Vinha andando, olhando as luzes, os pisca-piscas e tudo o mais e parei aqui embaixo de sua janela pra admirar. Andei um bocado hoje e me sinto meio fraco. Desejo chegar logo em casa, pois minha barriga ronca.
-Ah já sei, quer filar a bóia é? Não tenho nada! Por favor, siga seu caminho senão eu chamo a polícia!
-Desculpe senhor, não era a minha intenção e já estou indo! Que Jesus lhes conceda um lindo Natal cheio de paz, alegria e muita fartura. Boa noite e mais uma vez desculpe incomodá-lo!
-Passar bem!
Vou embora, a porta se fechou na minha cara e eu devo seguir meu caminho porque ainda tenho uns três quilômetros pra chegar na minha casa. Acho que vou ligar o meu radinho pra ouvir uma canção. Quem sabe não toque alguma canção natalina, pois assim vou pra casa já com o espírito do Natal não é? Deixa-me ver o que vai tocar agora no FM.
-E agora a sua FM Liberdade vai tocar a canção Cidadão, composta por Lúcio Barbosa interpretada por Zé Geraldo:
Tá vendo aquele edifício moço?
Ajudei a levantar
Foi um tempo de aflição
Eram quatro condução
Duas pra ir, duas pra voltar
Hoje depois dele pronto
olho pra cima e fico tonto
Mas me chega um cidadão
e me diz desconfiado
tu tá aí admirado
ou tá querendo roubar?
Meu domingo tá perdido
vou pra casa entristecido
Dá vontade de beber
E pra aumentar o meu tédio
eu nem posso olhar pro prédio
que eu ajudei a fazer
Tá vendo aquele colégio moço?
Eu também trabalhei lá
Lá eu quase me arrebento
Pus a massa fiz cimento
Ajudei a rebocar
Minha filha inocente
vem pra mim toda contente
Pai vou me matricular
Mas me diz um cidadão
Criança de pé no chão
aqui não pode estudar
Esta dor doeu mais forte
por que que eu deixei o norte
eu me pus a me dizer
Lá a seca castigava
mas o pouco que eu plantava
tinha direito a comer
Tá vendo aquela igreja moço?
Onde o padre diz amém
Pus o sino e o badalo
Enchi minha mão de calo
Lá eu trabalhei também
Lá sim valeu a pena
Tem quermesse, tem novena
e o padre me deixa entrar
Foi lá que Cristo me disse
Rapaz deixe de tolice
não se deixe amedrontar
Fui eu quem criou a terra
enchi o rio fiz a serra
Não deixei nada faltar
Hoje o homem criou asas
e na maioria das casas
Eu também não posso entrar...
Puxa, que letra essa... Me emocionei demais com ela, profunda e verdadeira não é? Este compositor é mesmo inspirado! Mas deixa seguir meu caminho. Aliás, vou apressar meus passos pois são onze e meia e minha família me espera. Não vejo a hora de encontrá-los para a ceia de Natal. Agora as luzes de Natal já não mais me acompanham o caminho e só o brilho da lua guia meus passos. O silêncio toma conta das ruas e não ouço mais a algazarra das festas de família. Estou realmente cansado e agora que começo essa subida preciso respirar fundo para encarar a ladeira de terra batida. Deixa eu parar um pouco pra descansar. Mas espera, não posso! Se eu parar, chego depois da meia noite em casa e aí já viu. Vou aos trancos e barrancos, mas vou. Ah, olha quem vejo na varanda de sua casinha, meu compadre Bastião!
-Oi Bastião, acordado ainda meu compadre?
-Pois é Zé, eu estou aqui pitando meu cigarro de palha até o sono chegar.
-Mas e o Natal, vai passar outra vez só?
´-Que remédio Zé, sou só, você sabe e eu não creio na simbologia do Natal. A vida me fez ficar um pouco descrente e hoje sou um tanto quanto cético.
-Ah, vamos lá pra casa! Será um prazer recebê-lo para a ceia meu amigo!
-Não Zé, agradeço, mas não vou aceitar. Vou ficar aqui só olhando a luz das estrelas pitando esse fuminho de corda aqui. Vá Zé, corre senão vai se atrasar!
-Que pena que não poderá vir Bastião, mas desejo-lhe um Natal maravilhoso viu? Fique com Deus compadre Bastião!
-Amém Zé, amém!
Sigo meu caminho, mas não posso deixar de me entristecer por ver meu compadre assim sozinho e descrente. Espero que ele encontre sua fé novamente e que acredite, afinal acreditar de verdade é ter fé e ter fé é conseguir tudo aquilo que se quer.
Hummmmmmmm Graças á Deus estou chegando a minha casinha. E cheguei em tempo ainda para a ceia.
-Maria, meninas, papai chegou!
-Papai, papai! A sua benção! Que bom que o senhor chegou! Estávamos esperando o senhor com ansiedade para a ceia. Mamãe toda hora olhava no relógio!
-Meus amores, Deus abençoe vocês minhas filhas queridas! Abracem o papai aqui e me deixa-me beijá-las meus tesouros preciosos. Que bom reencontrar vocês minhas princesinhas. Cadê mamãe?
-Está lá no quarto papai, ela está se aprontando pra ceia.
-Vou lavar as minhas mãos e vou lá agora. Fiquem aqui está bem?
-Sim papai, estaremos aqui.
-Oi amor, posso entrar?
-Claro amor, entra. Me diz, o que você trouxe hoje para a ceia? As meninas estão ansiosas.
-Maria, meu amor, minha vida, consegui 10 pãezinhos e quinhentos gramas de mortadela lá da venda do Seu Juca, um homem muito generoso. Eu pedi quatrocentas gramas e passou cem gramas, mas ele não me cobrou a mais.
-Que bom Zé, mas só isso rendeu hoje?
-Sim Maria, foi o que deu pra comprar com as latinhas que vendi hoje pro sucateiro. Não consegui catar mais nada. A concorrência nos recicláveis é grande. Passei o dia puxando esse carrinho e tive que retornar com ele vazio. Pra subir essa ladeira aqui até nosso barraco foi um “upa” e quase deixei o carrinho no barraco do compadre Bastião. E você, conseguiu algo amor?
-Ah, consegui umas porções de arroz, um “cadinho" de feijão e uns legumes cozidos dos amigos dos barracos ao lado.
-Gente generosa demais essa. Devo a eles muitos favores! Mas vamos nos sentar e vamos fazer a nossa ceia que já está na hora. Meninas sentem-se!
-Nossa papai, mortadela? Que banquete teremos hoje! Acho que é a melhor ceia que já a tivemos não é papai?
-Sim minha filhinha, sem dúvida que é. Mas espera, tira a mão daí! O que lhe falei ontem sobre a ceia de Natal?
-Ah sim papai, me perdoa, primeiro temos que dar graças pelos alimentos não é?
-Sim, vamos orar! “Senhor nós Vos damos graças pelos alimentos que temos em nossa mesa hoje nesta noite em que celebramos o Vosso nascimento. Conceda-nos uma noite de paz, alegria e amor e que nós possamos estar unidos ainda mais nos ideais que você Mestre, nos pregou como diretriz. Amém!” Meninas, agora comam direitinho. Passa-me a jarra d’água meu amor?
-Aqui está Zé, vamos brindar... Pena que as canecas de plástico não façam tin tin quando tocadas umas nas outras, mas não tem importância, o importante é brindar não é?
-Sim amor, é verdade!
Aqueles quinhentos gramas de mortadela rapidamente desapareceram e nos saciamos numa ceia deliciosa que como minha filha bem lembrou foi a mais deliciosa desde que ela nasceu. As anteriores foram piores talvez, mas graças á Deus ela não pegou essa fase. Comemos, nos saciamos, demos graças e fomos dormir o sono dos justos, felizes por estarmos unidos e com saúde. E ao dormir, ainda rezo, pedindo ao bom Deus que me conceda forças pra empurrar novamente meu carrinho pelas ruas amanhã em busca de recicláveis, pois o que tínhamos de alimento, comemos nesta ceia e amanhã tenho que arrumar alimento para o nosso almoço.
Acordo agora, depois de um sono tranqüilo onde me refiz do cansaço de ontem. Vou lavar a cara e sairei de novo morro abaixo em busca de minha sobrevivência. Os pássaros cantam lá fora, o sol está esturricando apesar de serem 9 da manhã e lá vou eu. Desço o morro de novo.
-Ô Bastião, bom dia compadre! Ainda no cigarrinho de palha?
-Pois é Zé, maldita insônia!
-Eu sei como é, mas hoje e vinte e cinco de Dezembro, dia de Natal, tenhamos fé!
-Tenho não, já perdi!
-Esse é o velho Bastião que conheço! Mas deixe-me ir. Até logo mais compadre!
-Até! Boa catança! Mande beijos pras meninas e minhas lembranças á Maria sua patroa!
-Pode deixar, mandarei sim!
Nossa, caminho ladeira abaixo e já vejo o movimento das ruas lá no centro da cidade. Como é bonita vista daqui de cima do morro! As ruas estão desertas. O pessoal está dormindo, aposto que estão todos de ressaca há essa hora. Vejo algumas garrafas de champanhe vazias e vou recolhê-las. Espero lotar o carrinho hoje...
Meio dia e nada! A concorrência é grande! Não consegui meu almoço e não sei o que dizer á Maria e as meninas. Que desculpa darei? Preciso pensar. Recorrer ao Seu Juca não dá. Ele é um homem generoso, mas aí é abusar. Deixa-me seguir meu caminho. Agora avisto aquela casa que parei ontem. Ih esqueceram os pisca-piscas ligados, vou avisá-los! Hummmmm Estou vendo uma montanha de lixo na porta. Será que acho algum reciclável? Deixa-me vasculhar aqui.... Hummmmmmm Nossa, metade daquele pernil desperdiçado. O manjar também não foi comido. Restos de frango... Coxas intactas e tudo embolado no lixo com terra e outras sujeiras. Nossa, vomitaram aqui dentro. Meu Deus, que desperdício! Mas deixa-me tocar a campainha. Tin tón!!!!!
-Quem é a essa hora da manhã? Ah é você de novo? Eu já não te disse que não tenho nada pra te dar? Porque não dá o fora daqui antes que eu chame mesmo a viatura?
-Mas senhor é que eu queria...
-Passar bem! Ande logo vagabundo que já estou com a mão no telefone!
-Desculpe, já estou indo! Bom Natal para o senhor e para a sua família. Deus os abençoe!
Vou embora cabisbaixo, sem nada pra vender como reciclável e sem um centavo para dar de comer a minha família. O jeito é caminhar mais um pouco com este carrinho e tentar achar algo por aí. Deixa-me ligar meu radinho pra me distrair, pois quem sabe não ouço algo que me alegre o dia pelo menos? Que será que está tocando na Liberdade FM? Deixa ver...
“Fui eu quem criou a terra
enchi o rio fiz a serra
Não deixei nada faltar
Hoje o homem criou asas
e na maioria das casas
Eu também não posso entrar...”
Lágrimas sentidas rolam de minha face, mas continuo a empurrar meu carrinho pela rua, porque acima de tudo e de todos, preciso sobreviver...

2 comentários:

Moniquinha disse...

Ah meu amigo querido! Esse conto me faz chorar a cada vez que leio. Tua sensibilidade é tocante. Lindo e carregado de sentimento.
Amei.
bjs!

Eliana Klas disse...

...é meu querido...
Nossa Fé em Deus, no Filho de Deus, nossa fé na vida, muitas vezes se vê confrontada com nossa fé no homem...
...é muito dificil continuar tendo fé no ser humano.
Mas cabe a mim e a você fazermos diferente. Cabe a nós levarmos um sorriso ao nosso irmão, (de forma prática) e devolvermos a ele a fé em sí mesmo.

PS: eu também não gosto deste período...

Um beijo, meu amigo, meu irmão.
Fique bem.